domingo, 20 de setembro de 2009

água nos olhos, parte 15

os meses de casamento se arrastavam, se enrolavam uns nos outros. não havia diferença de verões e invernos. dentro da casa, estava sempre confortavelmente aclimatado.
na primavera, as flores floresciam, e adrielly gotava de olhá-las. achava-as pequenas, frágeis, e tão bonitas. começou um curso de moda pelas manhãs.
eliane conseguiu sua aposentadoria no outono. falava mais de morte, e estava mais amarela. a felicidade do seu sonho consumido se extinguia dia a dia, sem ela perceber. a casa era grande, o seu quarto longe, e pouco via a filha. guardava o rancor de sua vida dedicada à educação, que só tinham corróido suas unhas e deixado seu cabelo cair. passava o dia tentando controlar tudo que era possível, mas sua filha lhe escapava e a babá pouco a ouvia.
isabela, a menininha, tinha uma babá. esta vestia branco e fazia de tudo. brincava, dava mamadeira e beijava. também dava banho quando ela tinha febre, tirava a temperatura, e já trazia olheiras maternais pelos choros intermináveis quando a noite reinava sob o mundo e a pequena gritava, condoída de dores que não se sabia da onde vinha.
o médico voltava na sua rotina normal de trabalho. tinha-a diminuído para poder aproveitar mais adrielly e desfrutar de tudo que ela se prupunha. agora, a comodidade alcançava os braços ousados daqueles dois, e a vida de marido e mulher se adentrava, sem que eles percebessem. agora resolvera dedicar-se ao trabalho. tivera missão cumprida, a amara, e ela não reclamaria. voltara a cultivar o jardim para que ela pudesse admirar as flores. estavam bonitas, faziam sombras no jardim acimentado.
a vida amarelava-se, na ordem das rotinas.


escureceu, a partir do dia em que se descobriu, para desespero de todos, menos do portador, a cegueira.

domingo, 9 de agosto de 2009

água nos olhos, parte doze

o casamento se fez.
adrielly resolvera prender os cabelos, e seu futuro marido, parado ao pé do altar, achou-a mais bonita assim. tinha um coque no alto da cabeça, e uns fios soltos que lhe davam um ar de menina. as flores que tinham resistido ao atentado que sofrera foram pregadas levemente, pelas mãos talentosas da sua mãe. a menina ainda não sabia como se sentia. era assim, como se tivesse sido invadida. toda aquela explosão de felicidade que antes sentia, foi substituída por uma comodidade complacente, mas nem por isso, menos alegre. talvez sua mãe estivera certa em provomer seu casamento naquela noite e lhe dar um pouco do gosto que ela tanto esperara. queria apagar as lembranças passsadas, de todo jeito, e das que seu marido levaria. queria sumir com o pai da sua filha, um fantasma encardido que se arrastava pelos cantos escuros do seu corpo.
o médico sentia-se confuso, mas não menos que antes, pois tinha certeza que amava a pequena. isso porque sabia-se que o amor era feito de sacrifícios, era feito de promessas, era um tal de fechar os olhos e acreditar só no que a boca da sua amada lhe dizia. e era isso. era isso, a amava, e iria se casar, não importasse tudo isso. queria a proteger, guardar dentro da sua casa, seu coração, para que nunca mais aquele homem toque na sua menina. ele nunca mais a veria. nunca mais.
algumas pessoas desertaram da igreja, estava mais vazia que antes, mas isto serveria. adrielly entrou, radiante como quisera, com o sorriso maior do mundo. ninguém diria que momentos atrás, estivera em desespero silencioso, em crise interna, tendo suas feridas quase cicatrizadas, abertas, sangradas, escancaradas. parecia que aquilo lhe servia como curativo. ao menos, um temporário.
e os instrumentos fizeram-se músicas, os tons se trombaram, a melodia trouxe de volta a paz e a promessa do amor eterno. e as palavras do padre, cansado e um pouco incomodado, numa missa rápida, com a benção de Deus. os olhos de eliane, chorosos, o sorriso constante, a filha ali, o véu sendo levantado, o beijo ingênuo, a mão do padre os abençoando, ai meu Senhor, meu sonho se cumprindo, aqui na minha frente, ai meu Senhor, obrigada por este momento.
no final da cerimônia, agora marido e mulher, ele lhe beijou a testa e disse que pedira que tocassem uma música para ela. era bonita, e ele cantou, no seu ouvido, para dentro de sua alma-menina... "vem ver que ainda vale o sorriso que eu tenho para lhe dar....".
a festa foi pequena, vinho do porto e massa recheada, adrielly descobrira-se cansada demais para aproveitar. sempre pensara que ia ser uma noiva dançante, animada e sorridente. só queria ir se deitar, e confessou isto ao médico, seu marido.
recolheram-se, despediram-se, receberam todos os votos de felicidade.
fizeram amor com carinho e cuidado, entre as flores naturais que se desprendiam do cabelo de adrielly. dormiram abraçados, nus, feitos como vieram ao mundo, até não poderem mais; para poder sonhar com a noite serena e doce que perduraria para sempre nas suas vidas conjugadas.

p.s.: não, eu não desisti e acabei com a história. não pensem que mudei meu estilo trágico. uma história minha não terminaria com uma noite feliz de casamento HA-HA-HA.
p.s. 2: a música é morena dos olhos d'água do chico - ora eu tinha que enfiar em algum canto esta música, perdoem a incoerência que isto pode levar.

domingo, 12 de julho de 2009

água nos olhos, parte onze

o médico estava já no altar, elegante sem seu terno preto e clássico, colecionando aflições de pré-casamento e repensando milhares de vezes se estava fazendo a coisa certa. se adrielly seria sempre aquela menina dócil e fresca que o fazia sentir borboletas em seu estômago. e se seus olhos fossem suficiente para fazê-lo feliz o resto da vida. suas dúvidas rodopiavam, em ciclos sem fim, sem encontrar nenhuma resposta. no fundo, gostaria que adrielly adrentasse logo e acabasse com aquele sofrimento inútil.
eliane, adornada por aquele vestido longo e verde presenteado pelo futuro genro, começava a se preocupar. viu a moça que cuidava da ordem das coisas da igreja e lhe sussurrou que fosse ver onde estava a noiva, e ela logo se apressou a passos rápidos. olhou para o futuro genro em pé, esperando pateticamente, e lhe correu que suas feições não mostravam a ansiedade que deveria. passaram alguns minutos, em que a dúvida do homem se transformava em agonia de espera, e a angústia da mãe aumentara, ao pensar que sua filha havia desistido da vida linda que estava escrita em seu destino. a moça voltou apressada, e comunicou aos pés do ouvido do noivo.
- Senhor, tem um homem segurando sua noiva. quer que eu chame a polícia ou...
antes que terminasse a frase, o homem desembestou pelo tapete vermelho, recebendo olhares curiosos das poucas pessoas que ocupavam os bancos.
eliane, pressentindo o pior, mas sem ter ouvido nada, resolveu ir correr atrás, com o coração na boca e as mãos já trêmulas. encontrariam sua filha traindo em frente a igreja? bêbada e estrupiada? ou... talvez... aquele canalha? o carma, o diabo encarnado de adrielly.
olhou ansiosa para alguma das amigas dela, que estavam também já gritando possibilidades dignas de romances baratos para o sumiço da menina, e perguntou lhes baixinho se tinha como o canalha vir a saber do casamento. as três já sabiam de quem se tratavam sem a menção de seu nome, como se isto fosse maldição. uma delas iluminou-se com esta notícia, e contou, com mais êxtase que arrependimento, que comentara com seu marido e este era muito chegado do referido.
tomou de assalto a realidade do advento, antes que a comprovasse, e agora mais do que nunca, a raiva e a ansiedade inundavam todos os seus poros reecheando-a das mais diversas possbilidades daquele encontro. ao abrir as portas da igreja, pouco depois do médico, que tivera contratempos com a organizadora, que insistia em dizer que era melhor ligar para a polícia, pois podia ser um assassino em série. ele havia derrubado a moça no chão, sem noção de sua força masculina e o ardor prenunciante de tragédia que tomava conta de seus espírito agitado. ambos viam adrielly, que chorava alto entrecortado por soluços infantis, e que ao ver seu futuro marido e sua mãe, tentou, com mais vontade, se desvincilhiar dos braços fortes do homem que a segurava.
- largue-a já! vou chamar a polícia, seu imbecil! largue minha mulher já!
paulo se principiava com a mão fechada em punho e o celular na outra. estava vermelho feito um pimentão, e via-se as veias estouradas nas suas têmporas. era só o que faltava alguém querer abusar de sua florzinha no dia do casamento, era só o que faltava. andava a passos largos, certo de que iria bater até matar o desgraçado, quando uma mão enrugada o puxou. olhou para trás, desconcertado e mais bravo do que nunca, e viu dona eliane.
- espera, não faz nada ainda, deixe comigo. você acaba de conhecer o verdadeiro e infeliz pai da isabela. e ele não é nada fácil, acredite.
o homem, diante da situação, soltara adrielly para fazer parecer que todo o tempo os braços dela também procuraram seu corpo. e podia afirmar, diante de qualquer um, que sentia seus dedos curtos procurarem seu corpo enquanto a segurava em seu choro mudo. agora ria, ria de nervoso, e ria do noivo desesperado, com aquela pose aristrocrática de machão, e que de nada valeria contra sua experiência em brigas urbanas.
- vai embora. você já fez seu show. agora, pode ir. vá embora e nunca mais volte.
elaine empunha a mão firme, e usava o tom que tratava seus piores alunos, quando queria lhes ferir. parecia mestra da situação, e tinha os nervos controlados, como se já tivesse passado diversas vezes por situações semelhantes.
adrielly tinha se afastado do impostor, e tinha o rosto abaixado, os braços caídos, como vergonha de algo que não sabia bem se tinha culpa. cumpunha uma imagem desoladora e aflita, pois emitia um choro baixo e de ritmo lento que tentava se amainar nos fins da tempestade.
o homem olhou para a senhora e novamente para o outro. vinha uma vontade enorme de matá-lo e o encarou. sentindo o olhar desafiador, paulo resolvera gritar, precedendo sem se exaltar, como fizera eliane.
- vai embora, seu desgraçado, que a polícia logo chega. vai embora para conservar um pouco de dignidade em você. deixa essa menina ser feliz comigo, porque com você parece-me que ela jamais foi.
foi até adrielly e transpassou seus braços por sua cintura, beijando sua cabeça.
- eu não posso ver isso, eu não posso ver que nojo que é isso. você não sabe de nada, você nunca vai saber o que rola entre nós dois, e que ela nunca vai amar outro homem como me amou. gosta de ouvir isso, malandrão? gosta? se ela quisesse teria se soltado de mim, mas ela gosta... ela ainda gosta... ela ia fugir comigo se tivessem demorado um pouco mais.
ainda que a noite parecia estar mais escura que o normal, via-se as lágrimas escorrendo pelo rosto do homem, como um rato que pensa ser desafiador, mas o que faz é apenas chorar a presa fugidia.
a boca de adrielly tremia, seu coração revoltava-se insanamente e quando falou, parecia fazer enorme esforço.
- não, eu não amo você, fabrício. eu não amo você desde o dia que você me violentou e o fruto dela, que é a minha filha, acabou por estragar a minha vida. a única coisa que você fez por mim foi me fazer sofrer, e sofrer não é amar, porque eu sei o que é amar... amar... - e voltou os olhos borrados e molhados para o médico que a avaliava atentamente - é você pra mim, é ser feliz... você...
fabrício riu um riso inescrupuloso. eliane se mexeu, incômoda, largada de ser mestre da situação, e abaixou a cabeça, como embaraçada por um segredo taciturno.
- você quis, doçura. e olha! olha, cara, boa sorte com essa vadia. boa sorte com essa vadia mentirosa, e se você quer realmente acreditar nela, não faço questão. mas a minha verdade, a minha verdade é só minha e não a largo de jeito nenhum, é que quando enfiei meu pau, a buceta dela tava toda molhada e quente. teria guardado a porra então, se tivesse como provar, para desmascarar o que essa vadia anda falando de mim. eu vou embora, e eu prometo... eu prometo nunca mais voltar... só se uma buceta me chamar, se é que você me entende.
virou as costas e saiu correndo, pois na esquina já se escutava a sirene policial e seu estardalhaço. na escada, juntava-se uma platéia heterogênea, composta pelos assombrados convidados, inclusive o tio acordado que mostrava uma pancada roxa na cabeça, e por todos os outros sedentos por porrada e sangue. pipoqueiros, mendigos, prostitutas, senhoras em robes, adolescentes risonhos e toda a corja urbana se misturava aos requintados, boquiabertos e um pouco chorosos, condolescentes dos últimos episódios. adrielly voltara a soluçar diante das últimas palavras ditas com verocidade, e escondia o rosto com as mãos, inacreditada daquela vergonha, disposta a odiar eternamente as mãos que escreviam sua história e aqueles olhos verdes glaciais que a torturavam imensamente. tomou o resto do ar que restava em seu peito, e falou com a voz entrecortada e chorosa:
- se você não quiser mais casar comigo mais, eu vou entender, eu... - e recomeçava a soluçar sem concluir pensamentos ordinários que vazavam pelos poros da sua pele.
- adrielly, eu acredito em você, eu acredito em você, florzinha. eu amo você, e nada vai estragar isso. ouviu? eu não darei ouvidos à ninguém a não ser o que você me disser.
o médico, desconcertado diante das tantas lágrimas que saíam daqueles olhos tão pretos e tão arrasadores, queria lhe dizer qualquer coisa que a acalmasse, qualquer coisa que pudesse fazer feliz uma alma que parecia tão ferida que jamais poderia sentir felicidade novamente.
- ele me violentou... e eu nunca vou ser a mesma outra vez, ele não pode negar isso.
- sim, você vai ser, você vai ser a menina alegre e bonita por quem me apaixonei. deixa isso de lado, tudo bem? vamos... deixar o casamento para outro dia, tudo bem?
- não... não... eu não quero adiar, eu quero me casar hoje. se bem que...
sua mãe, que durante o tempo todo, permanecera com a cabeça baixa, entreouviu a proposta do homem e juntou-se aos dois.
- melhor casar hoje, pois assim tudo isso irá se apagar, e vocês poderão ser felizes como planejado. vamos só adiar uma hora, para que ela possa novamente se arrumar e expulsar toda essa gentalha daqui. vem, adrielly, vem, se não só ficarei eu e isabela para assistir o dia mais feliz da sua vida.
a mãe puxou com força seu braço, e adrielly que não queria deixar de olhar aqueles olhos castanhos e acolhedores, que não queria deixar de estar no abraço quente e reconfortador de seu protetor, foi a passos vacilantes.
- mãe, talvez seja melhor adiar, eu estou horrível.
- não seja boba, adrielly, anda.
- mãe... eu não posso. me escuta.
- adrielly, me escuta você. você acha que seu homem vai engulir essa sua história do jeito que você pretende? quanto você acha que mede o amor que ele sente por você? digo por experiência, esses amores pouco duram, e o que resta é a sagacidade da mulher de prender ele entre suas pernas e, também, ao compromisso. vocês tem que se casar hoje, pois assim não dará tempo de ele pensar se quer mesmo levar um pedaço de encrenca para vida dele, que é o que significa esta família, e eu bem sei disso. você tem que casar agora, enquanto ainda resta dó no coração dele.
adrielly sentia-se enojada a cada palavra que sua mãe pronunciava, rapidamente e com frieza, sem medo que aquilo lhe soasse pior do que ouvira de fabrício.
- você não entende nada de amor. ele me ama de verdade, e eu o amo também. você tem inveja porque nunca teve um amor assim. e fala como se eu fosse culpada, como se eu fosse mentirosa. - recomeçava a soluçar, como se quisesse expelir aquela frase fazia muito tempo - você nunca acreditou em mim, mãe.
eliane parara de andar até o carro e olhou nos olhos perdidos em lágrimas de sua filha. abraçou-a, silenciosamente.
- casa hoje, se tem certeza do seu amor. casa hoje, se não tiver pensando em algum canto desta cabecinha teimosa, se o fabrício é o amor da sua vida. se você me provar isso, eu acreditarei em você. de pés juntos, até o final da minha vida.
adrielly enguliu o choro e limpou as lágrimas com as costas da mão.
- tudo bem, mãe. vamos logo com isso.

(...)
me sinto como um escritor de folhetins populares que o faz só para ganhar dinheiro. no caso, não ganho nem dinheiro, e nem tem público, mas ainda me parece uma história fraca e sem real valor.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

água nos olhos, parte dez

- você tá muito bonita, adrielly.
quem entraria com ela era o seu tio, na falta de um pai há muito ausente que apenas deixara uma aposentadoria. adrielly lhe sorriu, nervosa. os cabelos negros se intercalavam com flores brancas e naturais. quis deixá-los soltos, a cobrir as costas morenas à mostra. apertava os caules, nervosa, das rosas vermelhas em forma de buquê que trazia em suas mãos. seu peito arfava, e era tanta felicidade dentro dela que achava que explodiria. o carro parecia andar muito lentamente, e os ponteiros do relógio do seu tio pareciam zombar de sua felicidade. lá fora, o mundo apenas passava sem que ela prestasse atenção em qualquer imagem, apenas na sua própria dando os primeiros passos de seu sonho realizado. mal percebeu quando o carrou parou diante da imponente igreja que se erguia como um monumento de promessas e juras infindas. o motorista lhe abriu a porta, e ela esticou as pernas levemente e saiu com delicadeza. seu tio disse-lhe que ia fumar um cigarro para lá, pois não queria estragar seu perfume. ela consentiu, silenciosa. não queria falar nada, pois tinha medo que qualquer palavra ou ação imprevisível pudesse estragar tal momento tão esperado.
viu-se sozinha na escada da igreja. repentinamente, sentiu mãos frias tamparem seus olhos.
- o que é? tio, você vai estargar minha maquiagem.
e a voz no seu ouvido, baixa como um sussurrar de cobra cascavel, apavorou-a.
- não sou seu tio, doçura.
sentiu a brisa de suas palavras eriçarem os pêlos da sua nuca. agarrou aqueles dedos dominantes e tirou de seus olhos. queria comprovar, com todos seus sentidos atentos, a desgraça consumada, emudecida em seu medo mais terrível. diante dela, se portava como anos atrás, aqueles olhos verdes glaciais.
- que é que você faz aqui, caralho?
ele riu, um riso de lobo, que mais lhe parecia um uivo. só agora percebia como seus dentes amarelados pelo fumo eram pontudos.
- caralho, digo eu, doçura, como é que você se casa e nem me convida?
sentiu seu bafo de álcool e a impetuosidade daquela voz, que era vacilante e imponente ao mesmo tempo. olhou para os lados, procurando por alguém, clamando por seu tio.
- vai embora. me deixa ser feliz...
- feliz? como você acha que eu me sinto? qual é seu plano, princesa? vai colocar o nome desse babaca na nossa filha também? não, deixa eu adivinhar. aposto que você só se casou com ele porque ele tem dinheiro. certa você. mas eu duvido, ah... eu duvido... duvido que ele te fez feliz como eu.
seus olhos verdes inundavam-se em lágrimas, mas logo as limpou com as costas da mão. pegou, com suas mãos um pouco molhadas, nos braços despidos de adrielly.
- me solta, eu vou chamar meu tio.
- calma, doçura, eu só estou te lembrando como você gosta do meu toque... e seu tio... seu tio não vai acordar por muito tempo.
riu novamente.
- o que é que você fez com ele, seu animal?
- nada, calma. eu não ia apagar o velho. mas pára, pára de gritar. eu só quero conversar com você. vem aqui.
ele a puxou para perto de seu corpo. acariciava sua cintura ornamentada, afagava seus cabelos longos.
- vem, foge comigo. deixa a isabela aí. vem, vem comigo, vem, amor, vem, doçura. aqui, eu sou teu homem, só teu.
adrielly sentia aquelas mãos percorrem seu corpo, as lágrimas despencavam de seus olhos, a garganta ardia, como um nó, um nó dentro da sua alma, que arranhava sua ferida mais exposta, ainda mal cicatrizada, que ardia, sangrava, sangrava. tentou se desvenciliar, mas percebeu que quanto mais seu corpo se rebelava, ele a apertava mais contra seu corpo.
- por que você tá chorando, doçura?
sua boca tremia.
- não me machuca, por favor.
- por que diz assim? eu nunca te machuquei. você é minha menina, só minha.
ela beijou seu pescoço.
- como você tem coragem de dizer isso? você... acabou comigo... me deixa... em paz. me deixa, agora, ou eu vou gritar.
adrielly sentiu as lágrimas quentes dele molharem seu ombro. os dois soluçavam baixo, quase em harmonia, a disperdiçar lágrimas que lhes faltariam no futuro, por chorarem eternamente pelas imagens do passado.


(e se fosse um filme, filmaria adrielly ao som de 'morena dos olhos d'agua - chico buarque'.)

domingo, 10 de maio de 2009

água nos olhos, parte nove

então, quase chegava o dia esperado. adrielly riscava todos os dias do calendário pendurado em cima da sua cama, que em tempos de ir viver na casa do seu futuro marido, sentia profunda repugnância. já tinham acertado com o dono da casa, para que suspendesse o contrato de aluguel. era só ansiedade e ligava todos os dias para suas amigas, para inundar-lhes com a sua alegria e ajustar com elas para que tudo saísse conforme queria. gostava de assim, sentir seus uivos de alegria pela amiga, e pontadas de inveja muda. desde que ficara grávida, sentia-se arrasada e de má sorte, e sempre que ficava sozinha, comparava a sua vida à das amigas, caindo em desespero. uma delas fazia faculdade, a outra trabalhava e tinha um bom marido, porém desempregado, a outra era sustentada pelo pai e nada mais fazia que curtir a vida. por um tempo, se afastara delas, abandonada pela lástima, e sem querer que ouvissem seus acasos invertidos. não precisava delas para enxugar suas lágrimas. depois que isabela desmamou, começou a sair com elas, e mesmo desgostosa, esquecia-se das suas infelicidades, dos choros constantes da filha, das lembranças aterradoras, todos os finais-de-semana. porém, antes de a sorte apresentar sua tez sorridente, lhe doía essa vida sem destino, que se definia pelos berros da filha, pelo sorriso amerelado e cínico da mãe e de parceiros que nunca ligavam no dia seguinte. agora, sentia-se no topo, e não mais recebia consolos de suas amigas, mas sim espantos da guinada que sua vida dera.
mas quem mais tinha essa felicidade repleta era eliane. fazia chás para seu futuro e oficial - pela primeira vez - genro, com medo que ele escapasse antes do casamento se realizar. aceitara, pela filha, comprar umas roupas novas, pois só tinha cores cruas e desgatadas no armário. fizera as unhas, e até tornara-se menos rígida com seus alunos. cuidava de tudo que era pertinente ao casamento, principalmente quanto à igreja, e deixando claro ao padre que sua filha era virgem perante aos olhos de Deus. e agora, tinha os olhos cheios d'água ao ver a filha pela primeira vez vestida de noiva. todo rendado, com mangas três quartos, cobria os pés, o véu de tecido transparante, a pele morena contrastante com o branco virginal, flores costuradas com strass cristalizados. as amigas mexiam aqui e ali, reclamavam a altura do véu, invetavam penteados. as adrielly não podia tirar os olhos da sua própria imagem refletida no espelho, como não podia arrancar o sorriso permanente que se instalara nas suas feições suaves.
a costureira fazia as última marcações com os alfinetes, uma senhora gorducha e de roupas gastas, um pouco mal-humorada. a sua filha acompanhava, que era boa penteadeira, e elogiava-a a todo momento, como era magra e bonita, como era jovem e delicada. queria pôr umas flores brancas naturais nos seus cabelos, e ela concordava dizendo que seu amado a chamava de florzinha, e seria tão tudo bonito. isabela quieta, olhava a mãe, assustada, e brincava com pedaços de tecidos brancos, sem nem perceber.

quem menos se preocupava com tudo isso era o médico, que apenas sorria em ver a sua pequena cada vez mais feliz. apenas quis arranjar uma boa babá que lá morasse, pois não queria se preocupar em cuidar de crianças todo o tempo. comprou passagens para a lua-de-mel, para um lugar perto, pois não podia tirar licença grande. dias antes, enfiou-se eum uma sombra de dúvidas se estaria preparado para receber toda a corja, e mudar abruptamente o seu modo de vida. pudera ser tudo mais simples, e que tivesse a pequena nas horas ardentes na cama, ou nos carinhos sossegados e matinais.

terça-feira, 21 de abril de 2009

água nos olhos, parte oito

quando ainda tinha dezesseis anos, poucos e sonhadores dezesseis, adrielly passava todos os dias por uma loja de vestidos de noiva. com dezesseis, a vida parecia simples. iria se apaixonar, iria se casar, com véu e grinalda e buquê e festa com vinho à vontade, iria ter filhos, iria ser feliz. porém, deram de entortar as linhas previsíveis da vida, deram de desfazer o destino sonhado, deram de trazer-lhe o contrário doloroso. quando descobrira a gravidez indesejada, pertubada e triste, branca como uma vela, cheia de fogo e dor, foi chorar em frente à loja. olhava os vestidos, os olhos aguados, olhava o branco, a renda, florezinhas, felicidade prometida, falecida. nunca contou à ninguém. enfiou-se em uma carapaça cheia de modernidades, e passou a dizer para os outros que casamento era careta, ela era livre, sempre livre. agora, sentada na cama, sentia vontade de chorar. não mais frustração, mas um vislumbre de um sonho há muito esquecido.
- amor, quero me casar de branco, quero um buquê de rosas vermelhas.
ele sorriu e continuou a ver a televisão.
- amor, vai ser uma grande festa?
- eu pensei numa coisa pequena, só nós, sua mãe, a isinha, o padre.
- por que não seus amigos médicos, seus parentes, bastante gente, uma festona? eu sei que é caro, mas...
- não é caro, florzinha, mas eu não gosto dessa gente, eu gosto de você, só. o que é que você tem, por que esses olhos inundados?
ela beijou sua bochecha.
- é que eu sempre quis me casar.
- eu sei, florzinha. eu convido minha irmã, é minha única parente viva, só.
viu que ela continuava amuada, minguada, pequena naquela cama grande. seria seu segundo casamento, todos aqueles ditos amigos sabiam da catástrofe que fora seu primeiro, não precisava de motivo para que eles fofocassem sobre sua vida íntima.
- você compra o vestido que quiser, vai ser a noiva mais linda do mundo.
- e minhas amigas, não?
- sim, meu amor, agora vem aqui, fica calma, deita aqui, deixa eu te sentir.
adrielly se acomodou em seus braços, sorriu, serena. imaginou a felicidade da mãe, os olhinhos contentes, sinceramente contentes, desde o dia que isabela nascera. adomerceu nos braços do seu homem.

terça-feira, 17 de março de 2009

água nos olhos, parte sete

o domingo se esvaía lentamente. a mesa estava bonita, com uma toalha xadrez e jarras de leite e água quente e café, com uma jarra de flores brancas de miolo amarelo no centro. sentia-se o cheiro de pão de queijo caseiro da esquina. adrielly não conseguia parar de sorrir. estava bonita, com uma tiara de oncinha que prendia os cabelos para trás e deixava ver como irradiava. do seu lado, o médico tinha sua mão sobre a dela, as mãos firmes e ásperas que pareciam não combinar com aquela situação. no colo de uma avó cheia de falatórios, isabela brincava com seu pão de queijo. eliane olhava com avidez a todo momento o homem ao lado da sua filha, sem querer perder nenhum segundo da sua realização. queria poder chamar sua empregada em roupa uniformizada para recolher os pratos, pois parecia-lhe, aquela, uma cena irreal extraída de um script de novela. mas ela não gostava de empregadas, e não achava que eram úteis, elas quebravam e roubavam, e roubavam maridos. o que enchia seu coração dessa felicidade que parecia apenas televisiva, era o orgulho da sua filha. uma menina bonita, crescida, cheia de erros, mas merecedora de todos os troféus. fora miss duas vezes quando mais adolescente.
o médico aparecia muito nos quatro meses que se seguiram de sua última noite. além de gostar de ver os dentes amarelados da sua sogra de cabelos pintados, a menina tinha muita febre. sempre cuidara de crianças, mas tinha perdido as esperanças em ser pai novamente. ainda lhe ardia os olhos e incomodava a alma, quando ouvia aquele choro que pedia o carinho do homem, mas sentia-se bem em saber que alguma criança precisava do seu amor, e não somente da técnica. gostava muito de adrielly. para ela, quase nunca tinha tempo ruim. pensava na possibilidade de levá-la à sua casa, intimidade máxima concedida. no momento que averiguava isso, ela levantara para recolher as xícaras e dera-lhe um beijo molhado nas têmporas, acompanhado de um sorriso que parecia embalado numa música de ninar. decidira-se. dera um beijo na nenê, prestava atenção nas últimas palavras de eliane e pegava nas mãos da sua menina, querendo falar-lhe.
saíram, o quintal acimentado parecia-lhe de extremo mal-gosto.
- quer conhecer minha casa?
adrielly sentiu o coração retumbar. ele estava abrindo-lhe as portas, todas as portas, definitivamente. percorreu pelo seu corpo um arrepio sem dono nem sorte.
- claro, meu amor.
abraçou-o e transpassou os braços pela nuca. beijou a boca dele e sorriu.
- agora?
- ééé... agora?
sobressaltou-se.
- sim... por favor.
mordeu os lábios devagar e escorregou uma das mãos pelo coz da calça jeans dele. ele sorriu aquele sorriso maníaco, aquele mesmo que a fazia revirar os olhos enquanto doía-lhe a garganta.


ela não imaginaria aquilo. aquela casa poderia ser uma das fotografas em revistas de decoração e arquitetura que ela comprava para ler no banheiro. seus telhados se covertiam em cores vivas vermelhas sobre paredes paredes brancas espaçadas por grandes vidros espelhados. havia canteiros de flores e dois portões ornamentados de azul escuro. no andar de cima, uma sacada de portas azuis a esperava. seus olhos espantavam cada vez que captavam algum sonho obscuro seu. tentou não mostrar tanta surpresa. por dentro, era cuidadosamente decorada, e combinada com as mais diversas cores. sofás em tons beges, televisão de plasma que ocupadava quase uma parede lateral, quadros em tons pastéis, abajoures altos de madeira maciça. subiu as escadas delicadamente. havia porta-retratos sem fotos. poderíamos ocupar eles já, já, amor.
- é lindo, amor.
- você que é.
despiou-a carinhosamente e beijou suas partes mais recônditas e quentes, alucinou-se nas suas curvas e arrancou-lhe sorrisos de êxtase.
ela parecia triplamente extasiada por estar naquela cama, por olhar aquelas cortinas, e maravilhada pelos eletrodomésticos e estupefata pelo closet. decidiu que faria tudo que ele pedisse, com todo fervor que conseguisse. disse-lhe isso num sussuro, lambeu suas orelhas, chupou seu pênis sem cerimônia, enterrou suas unhas nas costas, ficou de quatro no ato, gritou, mesmo se só sentisse cócegas.
e enquanto ele a engolia por trás, suava e sorria, gritou antes de gozar, em um último fôlego que restava:
- vamos... nos... casar!
ela gemeu uma eternidade, e mais tarde, agradeceria à seus olhos por o fazer afogar em tanta umidade, e à sua vagina, por o fazer prisioneiro em tanto calor.

terça-feira, 3 de março de 2009

água nos olhos, parte seis

parou em alguma padaria iluminada por uma luz fraca. despiou-a com os olhos e disse em um tom confiante que esperasse por ele. adrielly desfocou o olhar para fora, talvez incomodada com tamanha segurança.
- e se eu for embora?
ele procurou os sinais em seu rosto que mostravam que aquilo fosse qualquer piada fora de hora. mesmo sem encontrar, respondeu, mostrando um sorriso de deboche.
- então vou amarrá-la.
beijou-a, apertando sua cintura fina e quebradiça com força. saiu apressado, e olhava para trás, com certo ar receoso. vendo-se sozinha, sentindo o escuro que dominava lá fora e uma neblina fraca e cinza que congelava cada resquício de desejo, lembrou-se da voz atormentadora que a procurara no início do dia. quis respirar, sair, ficar sozinha, chorar mais um pouco, deixar a dor passar, se misturar às outras dores conformadas, costurá-la à sua alma remendada. descobriu que estava trancada. pôde apenas desenhar, com os dedos, formas esquisitas nos vidros grossos. o que diria à ele? seus olhos já estavam em ponto de desaguar, novamente, quanta água havia ali? viu um vulto difuso se aproximando. deveria dizer, me leve para casa, me leve, por favor.
ele exibia um sorriso radiante quando entrou dentro do carro, o vinho já aberto, dera uma golada imensa no gargalo.
- não faço isso desde os meus dezoito anos!
ofereceu-lhe o vinho, enquanto afastava as tiras inconvenientes de vestido, alisando sua pele fresca e jovem. ela tomou-o, indiferente e quieta.
- que te acontece, dri?
- me levaria para casa?
tomou-se dele incrédula impaciência. que diabos de mulher era aquela? por que não abria logo essas pernas, por que não acabava com este jogo difícil, tal tormento sem sentido? fechou a cara, e colocou as mãos no volante, a ponto de desistir, de deixá-la, que se fodam essas moreninhas, essas mães carentes, frustradas.
- não, eu não te levaria.
digiriu até uma esquina escura, em uma arrancada ruidosa.
- vamos lá, moreninha, você está tão linda, tão perfumada... já lhe disse como gosto de seus olhos? são olhos de predadores, eu estou aqui inteiro por você... vamos lá, não vai doer nada, eu sou um cara decente, eu posso te dar todo carinho que sua carência grita.
beijava suas bochechas, seus olhos, as pontas miúdas dos dedos, enquanto falava, em quase apelo. dentro de si, o círculo se fechava, sentia-se todo homem, sentia-se todo desejo e toda vontade de devorar.
ela lhe olhava curiosa, olhares cheios d'água. ainda parada, a cona contraía-se um pouco.
- você quer muito isso? promete... que não vai me deixar? eu sou tão abandonada.
- eu sei, meu amorzinho, eu sei, vamos logo, vamos logo.
- você vai me deixar, você vai me deixar, você vai me deixar, você vai...
subira em cima dela, enfiava a sua língua por calá-la, despia-a sem pudor. tombou o banco para trás, ouvia seu gemido distante.
- não, não, doutor, não.
mordeus seus bicos pequenos, marrons, lambeu seu umbigo, a barriga lisa, gemeu baixo.
- não, não, doutor, não.
voltou a ver a cara, a cara encharcada de lágrima, os olhos dela cheios de pura água, havia tanto pranto pra ser desperdiçado!
- mas que que é? por acaso, és virgem?
riu alto, beijou-lhe a boca.
- chora, não, chora não, eu estou aqui, eu não vou fazer nada.
- eu tenho medo, medo, que você seja igual á ele.
ela nua, toda nua, um sonho, quase uma criança, seu pênis em ardência, quanta criança. ele nu, todo branco, um pouco gordo, a boca escancarada, toda a virilidade.
- eu não sou igual à ninguém, ora essa, eu amo você, eu amo a sua filha, vamos logo, abre isso.
ela gritou alto, ele teve que tapar-lhe a boca, queria concentrar-se no seu delírio, guardar de como ali era quente, era apertado, era amor. ela ainda chorava, se sabia toda molhada, tinha acabado de ouvir, amo... amo você, sua filha, olá, mamãe, você conseguiu. ela ofegava, um pouco suada, gemia baixo, as lágrimas cessaram. na sua mente, de olhos fechados, ela o via. mais novo, mais moreno, mais barbudo, nem um te amo. e depois de tanto chorar, tinha-se descobrido toda êxtase, flutuante, em águas rasas, das próprias lágrimas, de desejos frívolos, de pedidos carentes, de passados recentes. e, entre um corpo e outro, um vinho se espatifara, quase sem ruído, mas a tudo alagava, pintando com cor de sangue o que não se percebia de olhos fechados.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

água nos olhos, parte cinco

como se o acaso quisesse mostrar que, ás vezes, ele até tinha dó dos seus bonecos de pano, deu de presente à adrielly o som de um campainha distante e reconfortadora. sua mãe fora até a porta de seu quarto, sem se preocupar em consolá-la, e dissera-lhe:
- enxuga estes olhos que o homem que vai te salvar está aí!
eliane gostava de ser profética. chegara em casa, aturdida com seus alunos, um pouco mais amarelada do que o costume e cheirando fortemente à cigarro. encontrara a nenê imóvel e a filha se descabelando. não era a primeira vez que isso acontecia. ao ver o fio do telefone arrancado, entendera. ainda chegaria a hora de perguntar à ela se exigiu alguma pensão dele. mas agora, sentia compaixão pelo desespero que tomava conta de sua filha. talvez fossem cenas incontáveis de uma fita riscada, mas ainda doía na sua alma complacente de mãe.
- quem, mãe? QUEM? eu não quero ver ninguém hoje. NINGUÉM.
- o médico. ele tá na porta. e já avisei que você estava em casa.
adrielly enxugou os olhos, boquiaberta. ora, santo deus, isso é hora de me trazer o homem para casa? xingou sua mãe em pensamento, assentindo que a tal não seria nem capaz de mentir para seu próprio bem. ela estava tão interessada na fortuna que essa união esquisita podia trazer, que andara extrapolando certos limites. e agora? prendeu seus cabelos em um rabo-de-cavalo, escolhendo um vestido preto e simples, passou uma base para esconder as olheiras, perfumou-se rapidamente e vestiu umas botas que estavam para fora do armário. não importa mesmo. se for para ter um homem para fazer-lhe chorar o resto de sua vida, não importa. era melhor que todos fossem embora.
deu uma última olhadela de desgosto para a mãe, passou a mão pelos poucos cabelos da filha, que ainda via televisão, absorta e apressou-se.
- você é louco?
ela pretendia ser um pouco menos grossa, mas descobriu que naquele momento não podia controlar seu tom de voz e nem disfarçar seu nervosismo à flor da pele.
- me desculpe, tentei te ligar. mas o telefone não respondia. não liguei antes, porque estava de plantão, porém... essa noite é nossa.
ele sentira-se tão desconcertado pelo tempo que ficou lá fora, naquele vento gelado que traz pessimismo às almas desavisadas, e pelo tom de voz dela, que não fora de surpresa boa, mas de reprovação, que não reparara no estado depressivo da moça. ela o fitou com os olhos.
- essa não é uma boa noite. eu estou tão mal.
adrielly abaixou a cabeça. se bem que agora, talvez, precisasse mais de um abraço como nunca. um abraço que pudesse reacender a chama que apagara-se no seu peito. ele aproximou-se dela, aquelas mãos ásperas tocaram os seus braços finos. podia sentir como ela estava gelada, seus olhos caídos, acho que é um começo de uma gripe. mas talvez seja mal de espírito, e não de corpo.
- tudo bem, você quer algumas amostras grátis de...?
ouviu o seu suspiro decepcionado antes que terminasse a estúpida pergunta.
- desculpa, o que aconteceu? você está sempre tão linda e alegre, mesmo quando sua filha estava doente. eu saí da minha casa, a minha casa não é perto daqui, eu contava muito que pudesse vê-la.
seus lábios crisparam, queria ter a ousadia de trocar o verbo vê-la por tê-la.
- eu estou tão feia assim para você não querer me tocar mais do que nos meus braços?
sobressaltou-se, indignado com a própria falta de tato e sedução, e tomou o corpo mole nos seus braços. ela tinha um cheiro doce, muito doce; e era tão pequena que achava que poderia quebrá-la se a abraçasse demais. porém, anatomias fracas nunca significaram falta de fortaleza. sentiu como ela lhe apertava, encontrava a pélvis com seu pinto, agarrava seu ombro em um tato quase desesperado e procurava esconder-se dentro dele.
- vamos, eu sei do que você precisa.
abriu a porta do carro, quase sem se conter. em todo o caminho, desviava os olhos para as coxas às mostras entre o vestido curto e aquelas botas adolescentes. ela tinha sua mão na perna dele, como se não quisesse desgrudar de nenhuma parte sólida e com vida, temendo que assim, pudesse se expirar em sofrimento. ela olhava pela janela, acompanhava as luzes da cidade, perdia-se por devaneios, e perguntava-se se ele estava por entre aquelas ruas com aquele seu cheiro insuportável de cachaça. sobressaltou-se ao ver que paravam em frente à um motel. não era tão luxuoso quanto ela imaginou, era até mediano. observou aquele casarão informal, lembou-se daquele cheiro de lençol lavado, aquele tapete vermelho e o espelho no teto que tornava tudo tão mais enjoativo.
- não, aqui não. eu não quero. você mora sozinho?
ele engoliu em seco.
- moro.
- desculpa, motéis não me dão boa impressão.
ele pensou consigo. a mão dela apertava a sua coxa, forte agora, deixando de ter apelo emocional.
- a minha casa está suja, a filha da empregada está doente. a gente pode escolher outro lugar.
- você quer mesmo fazer sexo hoje?
disse de supetão. não sabia se seria capaz de dar o máximo de si em tal situação. era verdade que não negaria nada agora, sentia seu corpo carente, retorcido, haveria de ter alguém para esticá-lo, para dar-lhe vida. sentia necessidade, até porque suas tristezas eram acompanhadas por uma certa predisposição sexual. mas ele era o médico que sua mãe esperava que tornasse seu marido, se tinha que seguir uma vida distante da voz daquele telefonema, teria que dar tudo de si.
- a gente pode só... comprar um vinho. o que você acha?
ela sentiu o desapontamento na voz, os olhos que não paravam de desviar para as coxas, pararam em algum ponto fixo e distante. estava desconfiado. ela estava a enganar-lhe, enrolá-lo em sua linha, tricotá-lo por aquela vontade não cumprida. talvez fosse melhor deixar para lá essa coisa de perder-se em seus olhos negros e úmidos. logo que suas sensações eram acompanhadas por algum sentimento nobre, sobrava-lhe a decepção, a inferioridade diante da fêmea dominante.
- melhor eu te levar pra casa.
agitou-se dentro dela um coração inconstante, já não sabia o que fazer. respirou fundo, e aproximou a sua mão da virilha.
- espera. compra um vinho. eu gosto do seu carro. é seu... é grande. não é?
ele sorriu pela primeira vez na noite, um sorriso de lado, que mostrava apenas alguns dentes, e dava-lhe a conotação de maníaco, não pediatra. ela gostava de maníacos, e aproximou-se do seu corpo, beijando-lhe. ele sentiu aquela língua travessa, e todo o ardor que emanava de seu corpo. resolveu não dizer nada, e deixou que ela brincasse com sua língua nas orelhas e desse mordidas no seu ombro enquanto ia comprar o vinho em alguma padaria vinte e quatro horas.

(continua!)

água nos olhos, parte quatro

adrielly não queria transparecer ansiedade. mas corria os olhos pretos e sagazes ao telefone sempre que podia, esperando que ele tocasse. e atendia, em um instante, todas as operadores de telemarketing, cobranças de banco e parentes distantes. estremecia quando isabella não parava de chorar, e o telefone não parava de tocar, e tal sinfonia transformava-se em marteladas constantes em sua paciência. tinha medo que ele nunca mais fosse ligar, e que todos os seus esforços em tentar ser uma boa menina, uma menina para casar, tinha sido em vão. embora ela tenha visto alguma coisa em seus olhos. alguma coisa que dissesse à ela que queria ficar aninhado em seus braços. mas do que estou falando? talvez ninguém tenha me olhado assim. e isso fazia toda a diferença. certo dia, o telefone rangeu sua orquestra de esperança. mas a voz que atendeu do outro lado, transformou-a em desespero.
- como vai, docinho?
desligou o telefone em um clique impiedoso. quis chorar, e olhou para a sua menina. ela correspondeu o olhar, com aqueles verdes gélidos a fitá-la. que porra de olhos são esses, isabella? que porra de olhos são esses que me desgraçam. o telefone tremeu em sua mão. de novo. o martelar inconstante da proximidade de uma tempestade. o vento que sopra por trás dos cabelos e anuncia o fim do mundo.
- não desliga, docinho. eu não vou fazer nada de mal à você. como tá a nossa princesa?
os seus lábios tremiam. o seu coração dilacerava-se.
- tá bem. ela tem os seus malditos olhos.
- deixa eu ver ela, docinho. dar um dinheiro, você não quer?
- não quero nada de você. fica longe.
foi impetuosa em dizer. a sua mãe bem que queria um dinheiro. a situação tava cada vez mais difícil em casa. mas ela não podia fazer isso. ela não iria conseguir. sua garganta parecia ter-se fechado em um nó amargo.
- docinho, eu sei que você precisa. a gente pode conversar, eu sinto falta de você, você ainda tem aquele seu cheiro? e a princesa, deve ser linda, com os olhos do paizão.
desligou o telefone. arrancou o fio da parede, os olhos encharcados. aquela voz entorpecera todos os membros do seu corpo, medo acovardado e um pouco de excitação sem razão. apoiou-se na parede, tentando controlar seu desespero duplo, segurar seu choro auto-acusatório. sua filha olhava-a com interesse, os olhos grandes e assustados.
- por mim você nunca vai conhecer esse desgraçado, viu?
- gaçado, mã?
correu até o quarto e deixou-se chorar, feito uma criança que confunde uma sombra com um monstro. isabella ficou quieta, e pela primeira vez, não chorou... talvez entendesse que sua mãe precisava tanto das lágrimas como ela.


(hum, acertei no título UMA vez na minha vida, haha.)

água nos olhos, parte três

aceitou o convite do médico. por ordem prática e humana, a ligação dela não demorou a acontecer. a tosse da filha melhorara depois do xarope receitado, e nada melhor que uma voz clara e otimista de quem não saiu perto da menina nos últimos dias. poderia ser qualquer infecção na garganta, ele concluiu, mas... espere, acho melhor te explicar direito isso. eu passo aí para te pegar. quando soube, a avó onisciente deu um meio-sorriso. aquele médico é um bom rapaz e é médico. vê se não faz besteira, hoje eu fico com a menina, mas vê se arranja pra casar. adrielly não ouviu muito a mãe, enquanto escolhia a roupa de calcinha e sutiã rendados.
- escuta, filha. não transa com ele nos primeiros encontros.
ela piscou. parecia ter guardado aquela sabedoria milenar de como arranjar marido e só estar revelando agora à filha. finalmente, ela ia se encontrar com alguém que prestasse. um bom sujeito. grisalho, mas bom. e poderia muito bem desenterrar daquela desgraça que ela os havia metido. ela tinha impressão que estavam enterrados em lama até o pescoço. não queria dizer nada, mas era sua obrigação pagar seus esforços, sua tristeza e seu investimento duplo.
adrielly esborrifou o perfume doce, enquanto admirava-se no espelho. tinha dúvidas quanto as roupas que deveria usar. talvez, um pouco mais clássicas. optou por um cachecol branco que constatava com sua pele moreno-jambo.
- por quê você nunca levou a sério minha aptidão para a moda, mãe? eu vou apoiar a isa no que der.
eliana riu com deboche. porém, guardou para si seus ressentimentos. deixa essa flor desabrochar, ela é só um broto em ebulição.
- sério, filha, amarra esse homem. por favor, amarra.
foi sua vez de rir. achava-o um grande homem, respeitava sua profissão, tinha fetiches em transar em cima da mesa de operação. mas não acreditava que ele quisesse pouco mais do que ela mesma, um pouco de prazer culposo. não podia negar que daria um bom pai. cada coisa que você pensa!
apressou-se quando ouviu sua buzina e deu um beijo na mãe, para tranquilizá-la. surpreendeu-se quando viu que saía, agora, com outro homem. talvez fosse só uma mudança estratégica de jaleco para blazer, mas ele parecia bruto. suas mãos firmes, que tocavam cuidadosamente peles macias de bebês, dirigiam com extrema aspareza e indiferença. quinze minutos de jantar e sabia do que mais gostava: sua voz. continuava sendo aquela voz tranquilizadora, uma espécie de anestesia natural. conversaram sobre a isa, sobre os tempos de faculdade. ela roçou sem querer suas pernas na dele. ele cravou seus olhos na mãe-garota risonha. riram, enquanto enrolavam os fios de talharini e levavam às bocas pedintes. tomaram bom vinho, até que as bochechas dela ruborizavam.
ele percebeu que entrava numa zona perigosa. assim como existem os salva-vidas que apitam quando a água do mar está além. há perigo de se afogar, de se afogar naqueles olhos d'água, e não apenas no seu corpo miúdo. quando isso acontecia, queria que os salva-vidas se calassem. queria que eles o deixasse um morrer, um pouco. morrer por um gesto, por um sorriso. isso raramente acontecia. não poderia acontecer, não doutor.
ele pagou a conta e pegou as chaves do carro. a noite se encerraria num motel e todo aquele perigo iria embora. beijaram-se no carro. ela tinha lábios finos, mas molhados, e tocava seus cabelos de maneira suave. ele ligou o carro, louco para chegar num quarto. qualquer quarto.
- me leva pra casa, por favor.
ela deve ter percebido. toda essa magia, essa adrenalina transparecendo, todos esses hormônios estúpidos, essa necessidade de sobrevivência da espécie. a fêmea quer garantir o macho. ela fareja e sente, sente o mínimo de possível cumplicidade. as fêmeas dessa espécie não querem só reprodução. querem pais presentes e carinho depois do sexo. querem jóias e jantares caros. querem ver o por-do-sol junto de seu animal domesticado.
- a gente se vê, não é? quero dizer, mesmo se for no clínica.
- sim, a gente se vê.
pausou. os olhos dela, que malditos olhos!, lhe diziam que não o deixariam em paz. os coletes de salva-vida foram roubados, doutor, sinto muito, quer que eu chame reforços? não, está tudo sob controle. eu aprendi a nadar quando era pequeno ainda.
- quero dizer, a gente se vê, com certeza. eu te ligo.
ela saiu do carro, um pouco assustada e satisfeita consigo mesma. quando chegou, deu um beijo na mãe, que já dormia. um beijo de gratidão. tirou a roupa, e deitou-se nua. alguma coisa ela teria que acertar. nem que for três casas da mega sena. algum dia se acerta todas.
já ele, enquanto dormia, deu-se conta de como era estúpido em se enganar. nunca ganhara uma competição de natação. mas, de qualquer maneira, poderia tirar o primeiro lugar. no coração de uma morena.
médicos não são românticos, cara. o que você disse?

água nos olhos, parte dois

Você é linda. Os olhos do médico diziam isso. Eram olhos de doutor, castanhos aveludados, por detrás de óculos de aro grosso. O cabelo era um pouco grisalho, mas isso não deixava de lhe dar certo charme. Tinha mãos firmes e cuidadosas e lembrava-a muito o seu pai. Isso era o que mais a agradava. Tinha ligado para que ele atendesse a sua filha logo. Não queria ir em um pronto-socorro, ela disse, a fila era enorme e a menina ardia de febre. Isso bem que era verdade, mas sabia como aquele médico a atraía.
“Por que essa roupa para ir na Clínica?” - a mãe perguntara. Ela sorriu e deixou-a pensar o que fosse. Tinham um pouco de dinheiro para pagar um convênio que oferecesse clínicas particulares e médicos bonitos e amáveis. Lembrou-se, porém, que o dinheiro que custeava a saúde garantida das três mulheres vinha da mãe. Sentiu-se um pouco envergonhada.
- A menina passou como a noite? - o Dr. Paulo esforçou-se a desviar os olhos daquela mãe estonteante. Era um tanto incômodo que ela já fosse mãe, e mesmo assim irradiasse tamanha atração. Ela era sexo, ele poderia sentir em cada olhadela disfarçada. Pousou os olhos na avó da criança, que não deveria ser chamada de avó, apesar das rugas já aparantes e os olhos amargos. Essa situação o perturbava um pouco. Poderia ir para a cama com a mãe e avó, e tudo que tinha era uma criança doente na sua maca.
Eliana olhou incisivamente para a filha. Era ela quem deveria saber, mas a menina não poderia responder. Viu que ela tentava, talvez quisesse parecer uma boa mãe diante do médico. Deixou ela falar, por sadismo.
- Pode me falar os sintomas mais detalhadamente?
Adrielly acompanhou sua boca formar a última palavra atentamente. Agora, seu sentimento de vergonha ultrapassava o simples pagamento do convênio médico. Atingia sua consciência materna e doía na sua alma condoída. Eu não estive com ela durante a noite, Doutor, mas se você quiser podemos passar outra noite juntos. Lambeu os lábios enquanto o pensamento formava-se na cabeça. Olhou para a mãe, e via como ela satirizava a sua vingança das noites mal dormidas. Tentou passar misericórdia com o olhar. Iria na igreja com a mãe, no domingo. Estava completamente moída. Para o seu alívio, e talvez maior humilhação, a mãe começara a falar tudo que tinha ocorrido durante a semana. Os choros intermináveis, a alergia na pele, as tosses secas, o intestino preso, a febre no último dia.
Adrielly foi olhar sua filha, enquanto o médico indicava alguns remédios e exames à avó. Ele deve estar acostumado com esse tipo de coisa, eu não sou tão vadia assim, ora essa, eu amo você, minha menina. Fazia a menininha rir com suas caretas. Quando se dera conta, o médico a observava sem pudor.
- Desculpa perguntar, mas é preciso saber. Ela tem pai? É que ele nunca compareceu a nenhuma consulta.
Adrielly sorriu, de lado. Não poderia abrir-lhe um sorriso convidativo, pois isso não combinaria com a situação. Deveria ressentir-se de ser mãe abandonada, mãe solteira, dê o nome que bem entender. Mas tinha uma certa impressão que a pergunta não era mera necessidade de conhecimento. Haveria algo a mais naqueles olhos bondosos. Talvez eles não fossem tão bondosos.
- Não, o pai abandonou nós três. - ela respondeu, impondo uma certa tristeza na voz. Ele despediu-se da avó, deu um beijo na menininha, desejou as últimas recomendações. Deixou para despedir-se da mãe por último, propositalmente. Ao apertar a sua mão, deixou um cartão. Deu um sorriso profissional.
Caso precisar, é só ligar.
Para Adrielly, o sorriso deixara de ter um ar formal. Olhou-o por alguns segundos, e saiu lentamente da sala, deixando que ele perscrutasse as batatas da perna e os braços finos bronzeados e os cabelos negros que acompanhavam seu andar suave.


(letras maisculas depois de pontos? bem, vamos tentar.)

águas nos olhos

as sandálias estavam jogadas perto da porta. ela não tinha nem se dado o trabalho de tirar a roupa da noite anterior. dormia de bruços, com as pernas abertas, o vestido preto e apertado delineava as formas do corpo. os cabelos pretos emaranhavam-se com o lençol e o travesseiro.
- filha.
a mãe cutucou com os nós dos dedos as costas da garota, cautelosa. nem se mexera.
- filha, acorda.
respirou fundo, incomodada. tirou os cabelos de frente do seu rosto. ela respirava suavemente. se não fosse pelos olhos manchados da maquiagem, acharia que ela era a sua garotinha ainda. mas a sua garota agora tinha outra, e precisava acordar para ela. aproximou a boca do seu ouvido e o odor de cigarro e álcool invadiu suas narinas sagazes de mãe. afastou-se, contraditória, com uma careta.
- levanta. a sua filha precisa de você. vai, menina, acorda!
seu grito atingiu-a. se mexeu, incômoda. abriu um pouco as pupilas e olhou a mãe. fechou-as imediatamente.
- sai, mãe, deixa eu dormir.
- a sua filha tá com 38 graus de febre. ela passou mal a noite inteira.
- eu não tô com febre mãe, que coisa! e nem bebi tanto assim.
- a sua filha, adrielly! a SUA filha!
levantou-se vagarosamente, apoiando-se nos cotovelos. viu que estava com a mesma roupa da outra noite e sabia que sua aparência devia estar péssima. sua mãe viu temor em seus olhos, mas talvez tenha se confudido com o preto do lápis borrado.
- filha... mas quê? o que ela tem, mãe?
- febre. mas eu não tinha condição de levar ela pro hospital. e se for alguma coisa séria, eu quero ver só, eu quero que você aprenda. você não ouve seu celular, olha o tamanho das minhas olheiras, adrielly, eu já sou velha, adrielly... você é...
- bem, mãe, estamos quites em olheiras, não é?
a menina esfregou os olhos, espalhando ainda mais a maquiagem. sorriu para a mãe, que parecia estar a ponto de vomitar.
- adrielly, pelo amor de deus, filha, você é mãe! será que você não tem o mínimo de juízo dentro dessa sua cabeça, desse seu vestido curto, desse cheiro de de pinga! ah meu deus do céu.
- ok, mãe. você já disse todas essas coisas para mim. estou me levantando. posso tomar um banho antes?
um choro de nenê ressoou, distante. a mãe a olhou. adrielly teve a impressão que ela tinha água nos olhos. os olhos castanhos que antes eram vivos, olhos que embalaram sua infância, castanho agora parecia desgastado, ressequido, ressentido. parecia que não conseguiria mais embalar nem a filha crescida, nem a neta mal vinda.
- eu vou dar um oi para minha lindinha. e, depois, você pode aprontar uma mochila com as coisinhas da isa ou você quer que eu chege no hospital nesse estado?
a mãe mordeu os lábios. já não sabia o que deveria fazer. era governada por sua própria filha, e sua vida, agora, dependia da neta. tudo o que perdira era que Deus guiasse bem a sua vida. sabia que toda criança era uma dádiva, mas as suas duas crianças pareciam mais é presentes de Lúcifer. ultimamente, acreditava mais em Diabo que em Deus. saiu silenciosa, resmungando baixo.
- claro que você vai fazer isso, você não iria passar essa vergonha, né mamãe? - sussurou baixo. pôs os pés de unhas bem feitas no chão e saiu correndo para acolher a sua filha. gostava de como suas bochechas eram rosadas e como o seu riso era fácil. estava toda embalada em manta branca, e ainda estava quente. não gostava dos olhos verdes, verdes escuros, quase glaciais, exatamente iguais aos do pai. desviou do olhar impertinente e cheio de lágrimas da criança. colocou a cabeçinha em seu ombro, obrigando-se a não ver o que doía. olhou para a parede decorada de ursinhos cor-de-rosa do quarto da filha e teve vontade, também, de ter água nos olhos, perguntando-se o que seria daqui para frente. segurou suas lágrimas, pois acreditava que se mais alguém cedesse à vontade aquela casa viraria um mar, e já não haveria quem para poder ilhá-las.


(penso seriamente em fazer disto uma parte um)