sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

água nos olhos, parte cinco

como se o acaso quisesse mostrar que, ás vezes, ele até tinha dó dos seus bonecos de pano, deu de presente à adrielly o som de um campainha distante e reconfortadora. sua mãe fora até a porta de seu quarto, sem se preocupar em consolá-la, e dissera-lhe:
- enxuga estes olhos que o homem que vai te salvar está aí!
eliane gostava de ser profética. chegara em casa, aturdida com seus alunos, um pouco mais amarelada do que o costume e cheirando fortemente à cigarro. encontrara a nenê imóvel e a filha se descabelando. não era a primeira vez que isso acontecia. ao ver o fio do telefone arrancado, entendera. ainda chegaria a hora de perguntar à ela se exigiu alguma pensão dele. mas agora, sentia compaixão pelo desespero que tomava conta de sua filha. talvez fossem cenas incontáveis de uma fita riscada, mas ainda doía na sua alma complacente de mãe.
- quem, mãe? QUEM? eu não quero ver ninguém hoje. NINGUÉM.
- o médico. ele tá na porta. e já avisei que você estava em casa.
adrielly enxugou os olhos, boquiaberta. ora, santo deus, isso é hora de me trazer o homem para casa? xingou sua mãe em pensamento, assentindo que a tal não seria nem capaz de mentir para seu próprio bem. ela estava tão interessada na fortuna que essa união esquisita podia trazer, que andara extrapolando certos limites. e agora? prendeu seus cabelos em um rabo-de-cavalo, escolhendo um vestido preto e simples, passou uma base para esconder as olheiras, perfumou-se rapidamente e vestiu umas botas que estavam para fora do armário. não importa mesmo. se for para ter um homem para fazer-lhe chorar o resto de sua vida, não importa. era melhor que todos fossem embora.
deu uma última olhadela de desgosto para a mãe, passou a mão pelos poucos cabelos da filha, que ainda via televisão, absorta e apressou-se.
- você é louco?
ela pretendia ser um pouco menos grossa, mas descobriu que naquele momento não podia controlar seu tom de voz e nem disfarçar seu nervosismo à flor da pele.
- me desculpe, tentei te ligar. mas o telefone não respondia. não liguei antes, porque estava de plantão, porém... essa noite é nossa.
ele sentira-se tão desconcertado pelo tempo que ficou lá fora, naquele vento gelado que traz pessimismo às almas desavisadas, e pelo tom de voz dela, que não fora de surpresa boa, mas de reprovação, que não reparara no estado depressivo da moça. ela o fitou com os olhos.
- essa não é uma boa noite. eu estou tão mal.
adrielly abaixou a cabeça. se bem que agora, talvez, precisasse mais de um abraço como nunca. um abraço que pudesse reacender a chama que apagara-se no seu peito. ele aproximou-se dela, aquelas mãos ásperas tocaram os seus braços finos. podia sentir como ela estava gelada, seus olhos caídos, acho que é um começo de uma gripe. mas talvez seja mal de espírito, e não de corpo.
- tudo bem, você quer algumas amostras grátis de...?
ouviu o seu suspiro decepcionado antes que terminasse a estúpida pergunta.
- desculpa, o que aconteceu? você está sempre tão linda e alegre, mesmo quando sua filha estava doente. eu saí da minha casa, a minha casa não é perto daqui, eu contava muito que pudesse vê-la.
seus lábios crisparam, queria ter a ousadia de trocar o verbo vê-la por tê-la.
- eu estou tão feia assim para você não querer me tocar mais do que nos meus braços?
sobressaltou-se, indignado com a própria falta de tato e sedução, e tomou o corpo mole nos seus braços. ela tinha um cheiro doce, muito doce; e era tão pequena que achava que poderia quebrá-la se a abraçasse demais. porém, anatomias fracas nunca significaram falta de fortaleza. sentiu como ela lhe apertava, encontrava a pélvis com seu pinto, agarrava seu ombro em um tato quase desesperado e procurava esconder-se dentro dele.
- vamos, eu sei do que você precisa.
abriu a porta do carro, quase sem se conter. em todo o caminho, desviava os olhos para as coxas às mostras entre o vestido curto e aquelas botas adolescentes. ela tinha sua mão na perna dele, como se não quisesse desgrudar de nenhuma parte sólida e com vida, temendo que assim, pudesse se expirar em sofrimento. ela olhava pela janela, acompanhava as luzes da cidade, perdia-se por devaneios, e perguntava-se se ele estava por entre aquelas ruas com aquele seu cheiro insuportável de cachaça. sobressaltou-se ao ver que paravam em frente à um motel. não era tão luxuoso quanto ela imaginou, era até mediano. observou aquele casarão informal, lembou-se daquele cheiro de lençol lavado, aquele tapete vermelho e o espelho no teto que tornava tudo tão mais enjoativo.
- não, aqui não. eu não quero. você mora sozinho?
ele engoliu em seco.
- moro.
- desculpa, motéis não me dão boa impressão.
ele pensou consigo. a mão dela apertava a sua coxa, forte agora, deixando de ter apelo emocional.
- a minha casa está suja, a filha da empregada está doente. a gente pode escolher outro lugar.
- você quer mesmo fazer sexo hoje?
disse de supetão. não sabia se seria capaz de dar o máximo de si em tal situação. era verdade que não negaria nada agora, sentia seu corpo carente, retorcido, haveria de ter alguém para esticá-lo, para dar-lhe vida. sentia necessidade, até porque suas tristezas eram acompanhadas por uma certa predisposição sexual. mas ele era o médico que sua mãe esperava que tornasse seu marido, se tinha que seguir uma vida distante da voz daquele telefonema, teria que dar tudo de si.
- a gente pode só... comprar um vinho. o que você acha?
ela sentiu o desapontamento na voz, os olhos que não paravam de desviar para as coxas, pararam em algum ponto fixo e distante. estava desconfiado. ela estava a enganar-lhe, enrolá-lo em sua linha, tricotá-lo por aquela vontade não cumprida. talvez fosse melhor deixar para lá essa coisa de perder-se em seus olhos negros e úmidos. logo que suas sensações eram acompanhadas por algum sentimento nobre, sobrava-lhe a decepção, a inferioridade diante da fêmea dominante.
- melhor eu te levar pra casa.
agitou-se dentro dela um coração inconstante, já não sabia o que fazer. respirou fundo, e aproximou a sua mão da virilha.
- espera. compra um vinho. eu gosto do seu carro. é seu... é grande. não é?
ele sorriu pela primeira vez na noite, um sorriso de lado, que mostrava apenas alguns dentes, e dava-lhe a conotação de maníaco, não pediatra. ela gostava de maníacos, e aproximou-se do seu corpo, beijando-lhe. ele sentiu aquela língua travessa, e todo o ardor que emanava de seu corpo. resolveu não dizer nada, e deixou que ela brincasse com sua língua nas orelhas e desse mordidas no seu ombro enquanto ia comprar o vinho em alguma padaria vinte e quatro horas.

(continua!)

água nos olhos, parte quatro

adrielly não queria transparecer ansiedade. mas corria os olhos pretos e sagazes ao telefone sempre que podia, esperando que ele tocasse. e atendia, em um instante, todas as operadores de telemarketing, cobranças de banco e parentes distantes. estremecia quando isabella não parava de chorar, e o telefone não parava de tocar, e tal sinfonia transformava-se em marteladas constantes em sua paciência. tinha medo que ele nunca mais fosse ligar, e que todos os seus esforços em tentar ser uma boa menina, uma menina para casar, tinha sido em vão. embora ela tenha visto alguma coisa em seus olhos. alguma coisa que dissesse à ela que queria ficar aninhado em seus braços. mas do que estou falando? talvez ninguém tenha me olhado assim. e isso fazia toda a diferença. certo dia, o telefone rangeu sua orquestra de esperança. mas a voz que atendeu do outro lado, transformou-a em desespero.
- como vai, docinho?
desligou o telefone em um clique impiedoso. quis chorar, e olhou para a sua menina. ela correspondeu o olhar, com aqueles verdes gélidos a fitá-la. que porra de olhos são esses, isabella? que porra de olhos são esses que me desgraçam. o telefone tremeu em sua mão. de novo. o martelar inconstante da proximidade de uma tempestade. o vento que sopra por trás dos cabelos e anuncia o fim do mundo.
- não desliga, docinho. eu não vou fazer nada de mal à você. como tá a nossa princesa?
os seus lábios tremiam. o seu coração dilacerava-se.
- tá bem. ela tem os seus malditos olhos.
- deixa eu ver ela, docinho. dar um dinheiro, você não quer?
- não quero nada de você. fica longe.
foi impetuosa em dizer. a sua mãe bem que queria um dinheiro. a situação tava cada vez mais difícil em casa. mas ela não podia fazer isso. ela não iria conseguir. sua garganta parecia ter-se fechado em um nó amargo.
- docinho, eu sei que você precisa. a gente pode conversar, eu sinto falta de você, você ainda tem aquele seu cheiro? e a princesa, deve ser linda, com os olhos do paizão.
desligou o telefone. arrancou o fio da parede, os olhos encharcados. aquela voz entorpecera todos os membros do seu corpo, medo acovardado e um pouco de excitação sem razão. apoiou-se na parede, tentando controlar seu desespero duplo, segurar seu choro auto-acusatório. sua filha olhava-a com interesse, os olhos grandes e assustados.
- por mim você nunca vai conhecer esse desgraçado, viu?
- gaçado, mã?
correu até o quarto e deixou-se chorar, feito uma criança que confunde uma sombra com um monstro. isabella ficou quieta, e pela primeira vez, não chorou... talvez entendesse que sua mãe precisava tanto das lágrimas como ela.


(hum, acertei no título UMA vez na minha vida, haha.)

água nos olhos, parte três

aceitou o convite do médico. por ordem prática e humana, a ligação dela não demorou a acontecer. a tosse da filha melhorara depois do xarope receitado, e nada melhor que uma voz clara e otimista de quem não saiu perto da menina nos últimos dias. poderia ser qualquer infecção na garganta, ele concluiu, mas... espere, acho melhor te explicar direito isso. eu passo aí para te pegar. quando soube, a avó onisciente deu um meio-sorriso. aquele médico é um bom rapaz e é médico. vê se não faz besteira, hoje eu fico com a menina, mas vê se arranja pra casar. adrielly não ouviu muito a mãe, enquanto escolhia a roupa de calcinha e sutiã rendados.
- escuta, filha. não transa com ele nos primeiros encontros.
ela piscou. parecia ter guardado aquela sabedoria milenar de como arranjar marido e só estar revelando agora à filha. finalmente, ela ia se encontrar com alguém que prestasse. um bom sujeito. grisalho, mas bom. e poderia muito bem desenterrar daquela desgraça que ela os havia metido. ela tinha impressão que estavam enterrados em lama até o pescoço. não queria dizer nada, mas era sua obrigação pagar seus esforços, sua tristeza e seu investimento duplo.
adrielly esborrifou o perfume doce, enquanto admirava-se no espelho. tinha dúvidas quanto as roupas que deveria usar. talvez, um pouco mais clássicas. optou por um cachecol branco que constatava com sua pele moreno-jambo.
- por quê você nunca levou a sério minha aptidão para a moda, mãe? eu vou apoiar a isa no que der.
eliana riu com deboche. porém, guardou para si seus ressentimentos. deixa essa flor desabrochar, ela é só um broto em ebulição.
- sério, filha, amarra esse homem. por favor, amarra.
foi sua vez de rir. achava-o um grande homem, respeitava sua profissão, tinha fetiches em transar em cima da mesa de operação. mas não acreditava que ele quisesse pouco mais do que ela mesma, um pouco de prazer culposo. não podia negar que daria um bom pai. cada coisa que você pensa!
apressou-se quando ouviu sua buzina e deu um beijo na mãe, para tranquilizá-la. surpreendeu-se quando viu que saía, agora, com outro homem. talvez fosse só uma mudança estratégica de jaleco para blazer, mas ele parecia bruto. suas mãos firmes, que tocavam cuidadosamente peles macias de bebês, dirigiam com extrema aspareza e indiferença. quinze minutos de jantar e sabia do que mais gostava: sua voz. continuava sendo aquela voz tranquilizadora, uma espécie de anestesia natural. conversaram sobre a isa, sobre os tempos de faculdade. ela roçou sem querer suas pernas na dele. ele cravou seus olhos na mãe-garota risonha. riram, enquanto enrolavam os fios de talharini e levavam às bocas pedintes. tomaram bom vinho, até que as bochechas dela ruborizavam.
ele percebeu que entrava numa zona perigosa. assim como existem os salva-vidas que apitam quando a água do mar está além. há perigo de se afogar, de se afogar naqueles olhos d'água, e não apenas no seu corpo miúdo. quando isso acontecia, queria que os salva-vidas se calassem. queria que eles o deixasse um morrer, um pouco. morrer por um gesto, por um sorriso. isso raramente acontecia. não poderia acontecer, não doutor.
ele pagou a conta e pegou as chaves do carro. a noite se encerraria num motel e todo aquele perigo iria embora. beijaram-se no carro. ela tinha lábios finos, mas molhados, e tocava seus cabelos de maneira suave. ele ligou o carro, louco para chegar num quarto. qualquer quarto.
- me leva pra casa, por favor.
ela deve ter percebido. toda essa magia, essa adrenalina transparecendo, todos esses hormônios estúpidos, essa necessidade de sobrevivência da espécie. a fêmea quer garantir o macho. ela fareja e sente, sente o mínimo de possível cumplicidade. as fêmeas dessa espécie não querem só reprodução. querem pais presentes e carinho depois do sexo. querem jóias e jantares caros. querem ver o por-do-sol junto de seu animal domesticado.
- a gente se vê, não é? quero dizer, mesmo se for no clínica.
- sim, a gente se vê.
pausou. os olhos dela, que malditos olhos!, lhe diziam que não o deixariam em paz. os coletes de salva-vida foram roubados, doutor, sinto muito, quer que eu chame reforços? não, está tudo sob controle. eu aprendi a nadar quando era pequeno ainda.
- quero dizer, a gente se vê, com certeza. eu te ligo.
ela saiu do carro, um pouco assustada e satisfeita consigo mesma. quando chegou, deu um beijo na mãe, que já dormia. um beijo de gratidão. tirou a roupa, e deitou-se nua. alguma coisa ela teria que acertar. nem que for três casas da mega sena. algum dia se acerta todas.
já ele, enquanto dormia, deu-se conta de como era estúpido em se enganar. nunca ganhara uma competição de natação. mas, de qualquer maneira, poderia tirar o primeiro lugar. no coração de uma morena.
médicos não são românticos, cara. o que você disse?

água nos olhos, parte dois

Você é linda. Os olhos do médico diziam isso. Eram olhos de doutor, castanhos aveludados, por detrás de óculos de aro grosso. O cabelo era um pouco grisalho, mas isso não deixava de lhe dar certo charme. Tinha mãos firmes e cuidadosas e lembrava-a muito o seu pai. Isso era o que mais a agradava. Tinha ligado para que ele atendesse a sua filha logo. Não queria ir em um pronto-socorro, ela disse, a fila era enorme e a menina ardia de febre. Isso bem que era verdade, mas sabia como aquele médico a atraía.
“Por que essa roupa para ir na Clínica?” - a mãe perguntara. Ela sorriu e deixou-a pensar o que fosse. Tinham um pouco de dinheiro para pagar um convênio que oferecesse clínicas particulares e médicos bonitos e amáveis. Lembrou-se, porém, que o dinheiro que custeava a saúde garantida das três mulheres vinha da mãe. Sentiu-se um pouco envergonhada.
- A menina passou como a noite? - o Dr. Paulo esforçou-se a desviar os olhos daquela mãe estonteante. Era um tanto incômodo que ela já fosse mãe, e mesmo assim irradiasse tamanha atração. Ela era sexo, ele poderia sentir em cada olhadela disfarçada. Pousou os olhos na avó da criança, que não deveria ser chamada de avó, apesar das rugas já aparantes e os olhos amargos. Essa situação o perturbava um pouco. Poderia ir para a cama com a mãe e avó, e tudo que tinha era uma criança doente na sua maca.
Eliana olhou incisivamente para a filha. Era ela quem deveria saber, mas a menina não poderia responder. Viu que ela tentava, talvez quisesse parecer uma boa mãe diante do médico. Deixou ela falar, por sadismo.
- Pode me falar os sintomas mais detalhadamente?
Adrielly acompanhou sua boca formar a última palavra atentamente. Agora, seu sentimento de vergonha ultrapassava o simples pagamento do convênio médico. Atingia sua consciência materna e doía na sua alma condoída. Eu não estive com ela durante a noite, Doutor, mas se você quiser podemos passar outra noite juntos. Lambeu os lábios enquanto o pensamento formava-se na cabeça. Olhou para a mãe, e via como ela satirizava a sua vingança das noites mal dormidas. Tentou passar misericórdia com o olhar. Iria na igreja com a mãe, no domingo. Estava completamente moída. Para o seu alívio, e talvez maior humilhação, a mãe começara a falar tudo que tinha ocorrido durante a semana. Os choros intermináveis, a alergia na pele, as tosses secas, o intestino preso, a febre no último dia.
Adrielly foi olhar sua filha, enquanto o médico indicava alguns remédios e exames à avó. Ele deve estar acostumado com esse tipo de coisa, eu não sou tão vadia assim, ora essa, eu amo você, minha menina. Fazia a menininha rir com suas caretas. Quando se dera conta, o médico a observava sem pudor.
- Desculpa perguntar, mas é preciso saber. Ela tem pai? É que ele nunca compareceu a nenhuma consulta.
Adrielly sorriu, de lado. Não poderia abrir-lhe um sorriso convidativo, pois isso não combinaria com a situação. Deveria ressentir-se de ser mãe abandonada, mãe solteira, dê o nome que bem entender. Mas tinha uma certa impressão que a pergunta não era mera necessidade de conhecimento. Haveria algo a mais naqueles olhos bondosos. Talvez eles não fossem tão bondosos.
- Não, o pai abandonou nós três. - ela respondeu, impondo uma certa tristeza na voz. Ele despediu-se da avó, deu um beijo na menininha, desejou as últimas recomendações. Deixou para despedir-se da mãe por último, propositalmente. Ao apertar a sua mão, deixou um cartão. Deu um sorriso profissional.
Caso precisar, é só ligar.
Para Adrielly, o sorriso deixara de ter um ar formal. Olhou-o por alguns segundos, e saiu lentamente da sala, deixando que ele perscrutasse as batatas da perna e os braços finos bronzeados e os cabelos negros que acompanhavam seu andar suave.


(letras maisculas depois de pontos? bem, vamos tentar.)

águas nos olhos

as sandálias estavam jogadas perto da porta. ela não tinha nem se dado o trabalho de tirar a roupa da noite anterior. dormia de bruços, com as pernas abertas, o vestido preto e apertado delineava as formas do corpo. os cabelos pretos emaranhavam-se com o lençol e o travesseiro.
- filha.
a mãe cutucou com os nós dos dedos as costas da garota, cautelosa. nem se mexera.
- filha, acorda.
respirou fundo, incomodada. tirou os cabelos de frente do seu rosto. ela respirava suavemente. se não fosse pelos olhos manchados da maquiagem, acharia que ela era a sua garotinha ainda. mas a sua garota agora tinha outra, e precisava acordar para ela. aproximou a boca do seu ouvido e o odor de cigarro e álcool invadiu suas narinas sagazes de mãe. afastou-se, contraditória, com uma careta.
- levanta. a sua filha precisa de você. vai, menina, acorda!
seu grito atingiu-a. se mexeu, incômoda. abriu um pouco as pupilas e olhou a mãe. fechou-as imediatamente.
- sai, mãe, deixa eu dormir.
- a sua filha tá com 38 graus de febre. ela passou mal a noite inteira.
- eu não tô com febre mãe, que coisa! e nem bebi tanto assim.
- a sua filha, adrielly! a SUA filha!
levantou-se vagarosamente, apoiando-se nos cotovelos. viu que estava com a mesma roupa da outra noite e sabia que sua aparência devia estar péssima. sua mãe viu temor em seus olhos, mas talvez tenha se confudido com o preto do lápis borrado.
- filha... mas quê? o que ela tem, mãe?
- febre. mas eu não tinha condição de levar ela pro hospital. e se for alguma coisa séria, eu quero ver só, eu quero que você aprenda. você não ouve seu celular, olha o tamanho das minhas olheiras, adrielly, eu já sou velha, adrielly... você é...
- bem, mãe, estamos quites em olheiras, não é?
a menina esfregou os olhos, espalhando ainda mais a maquiagem. sorriu para a mãe, que parecia estar a ponto de vomitar.
- adrielly, pelo amor de deus, filha, você é mãe! será que você não tem o mínimo de juízo dentro dessa sua cabeça, desse seu vestido curto, desse cheiro de de pinga! ah meu deus do céu.
- ok, mãe. você já disse todas essas coisas para mim. estou me levantando. posso tomar um banho antes?
um choro de nenê ressoou, distante. a mãe a olhou. adrielly teve a impressão que ela tinha água nos olhos. os olhos castanhos que antes eram vivos, olhos que embalaram sua infância, castanho agora parecia desgastado, ressequido, ressentido. parecia que não conseguiria mais embalar nem a filha crescida, nem a neta mal vinda.
- eu vou dar um oi para minha lindinha. e, depois, você pode aprontar uma mochila com as coisinhas da isa ou você quer que eu chege no hospital nesse estado?
a mãe mordeu os lábios. já não sabia o que deveria fazer. era governada por sua própria filha, e sua vida, agora, dependia da neta. tudo o que perdira era que Deus guiasse bem a sua vida. sabia que toda criança era uma dádiva, mas as suas duas crianças pareciam mais é presentes de Lúcifer. ultimamente, acreditava mais em Diabo que em Deus. saiu silenciosa, resmungando baixo.
- claro que você vai fazer isso, você não iria passar essa vergonha, né mamãe? - sussurou baixo. pôs os pés de unhas bem feitas no chão e saiu correndo para acolher a sua filha. gostava de como suas bochechas eram rosadas e como o seu riso era fácil. estava toda embalada em manta branca, e ainda estava quente. não gostava dos olhos verdes, verdes escuros, quase glaciais, exatamente iguais aos do pai. desviou do olhar impertinente e cheio de lágrimas da criança. colocou a cabeçinha em seu ombro, obrigando-se a não ver o que doía. olhou para a parede decorada de ursinhos cor-de-rosa do quarto da filha e teve vontade, também, de ter água nos olhos, perguntando-se o que seria daqui para frente. segurou suas lágrimas, pois acreditava que se mais alguém cedesse à vontade aquela casa viraria um mar, e já não haveria quem para poder ilhá-las.


(penso seriamente em fazer disto uma parte um)