sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

água nos olhos, parte dois

Você é linda. Os olhos do médico diziam isso. Eram olhos de doutor, castanhos aveludados, por detrás de óculos de aro grosso. O cabelo era um pouco grisalho, mas isso não deixava de lhe dar certo charme. Tinha mãos firmes e cuidadosas e lembrava-a muito o seu pai. Isso era o que mais a agradava. Tinha ligado para que ele atendesse a sua filha logo. Não queria ir em um pronto-socorro, ela disse, a fila era enorme e a menina ardia de febre. Isso bem que era verdade, mas sabia como aquele médico a atraía.
“Por que essa roupa para ir na Clínica?” - a mãe perguntara. Ela sorriu e deixou-a pensar o que fosse. Tinham um pouco de dinheiro para pagar um convênio que oferecesse clínicas particulares e médicos bonitos e amáveis. Lembrou-se, porém, que o dinheiro que custeava a saúde garantida das três mulheres vinha da mãe. Sentiu-se um pouco envergonhada.
- A menina passou como a noite? - o Dr. Paulo esforçou-se a desviar os olhos daquela mãe estonteante. Era um tanto incômodo que ela já fosse mãe, e mesmo assim irradiasse tamanha atração. Ela era sexo, ele poderia sentir em cada olhadela disfarçada. Pousou os olhos na avó da criança, que não deveria ser chamada de avó, apesar das rugas já aparantes e os olhos amargos. Essa situação o perturbava um pouco. Poderia ir para a cama com a mãe e avó, e tudo que tinha era uma criança doente na sua maca.
Eliana olhou incisivamente para a filha. Era ela quem deveria saber, mas a menina não poderia responder. Viu que ela tentava, talvez quisesse parecer uma boa mãe diante do médico. Deixou ela falar, por sadismo.
- Pode me falar os sintomas mais detalhadamente?
Adrielly acompanhou sua boca formar a última palavra atentamente. Agora, seu sentimento de vergonha ultrapassava o simples pagamento do convênio médico. Atingia sua consciência materna e doía na sua alma condoída. Eu não estive com ela durante a noite, Doutor, mas se você quiser podemos passar outra noite juntos. Lambeu os lábios enquanto o pensamento formava-se na cabeça. Olhou para a mãe, e via como ela satirizava a sua vingança das noites mal dormidas. Tentou passar misericórdia com o olhar. Iria na igreja com a mãe, no domingo. Estava completamente moída. Para o seu alívio, e talvez maior humilhação, a mãe começara a falar tudo que tinha ocorrido durante a semana. Os choros intermináveis, a alergia na pele, as tosses secas, o intestino preso, a febre no último dia.
Adrielly foi olhar sua filha, enquanto o médico indicava alguns remédios e exames à avó. Ele deve estar acostumado com esse tipo de coisa, eu não sou tão vadia assim, ora essa, eu amo você, minha menina. Fazia a menininha rir com suas caretas. Quando se dera conta, o médico a observava sem pudor.
- Desculpa perguntar, mas é preciso saber. Ela tem pai? É que ele nunca compareceu a nenhuma consulta.
Adrielly sorriu, de lado. Não poderia abrir-lhe um sorriso convidativo, pois isso não combinaria com a situação. Deveria ressentir-se de ser mãe abandonada, mãe solteira, dê o nome que bem entender. Mas tinha uma certa impressão que a pergunta não era mera necessidade de conhecimento. Haveria algo a mais naqueles olhos bondosos. Talvez eles não fossem tão bondosos.
- Não, o pai abandonou nós três. - ela respondeu, impondo uma certa tristeza na voz. Ele despediu-se da avó, deu um beijo na menininha, desejou as últimas recomendações. Deixou para despedir-se da mãe por último, propositalmente. Ao apertar a sua mão, deixou um cartão. Deu um sorriso profissional.
Caso precisar, é só ligar.
Para Adrielly, o sorriso deixara de ter um ar formal. Olhou-o por alguns segundos, e saiu lentamente da sala, deixando que ele perscrutasse as batatas da perna e os braços finos bronzeados e os cabelos negros que acompanhavam seu andar suave.


(letras maisculas depois de pontos? bem, vamos tentar.)

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