sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

águas nos olhos

as sandálias estavam jogadas perto da porta. ela não tinha nem se dado o trabalho de tirar a roupa da noite anterior. dormia de bruços, com as pernas abertas, o vestido preto e apertado delineava as formas do corpo. os cabelos pretos emaranhavam-se com o lençol e o travesseiro.
- filha.
a mãe cutucou com os nós dos dedos as costas da garota, cautelosa. nem se mexera.
- filha, acorda.
respirou fundo, incomodada. tirou os cabelos de frente do seu rosto. ela respirava suavemente. se não fosse pelos olhos manchados da maquiagem, acharia que ela era a sua garotinha ainda. mas a sua garota agora tinha outra, e precisava acordar para ela. aproximou a boca do seu ouvido e o odor de cigarro e álcool invadiu suas narinas sagazes de mãe. afastou-se, contraditória, com uma careta.
- levanta. a sua filha precisa de você. vai, menina, acorda!
seu grito atingiu-a. se mexeu, incômoda. abriu um pouco as pupilas e olhou a mãe. fechou-as imediatamente.
- sai, mãe, deixa eu dormir.
- a sua filha tá com 38 graus de febre. ela passou mal a noite inteira.
- eu não tô com febre mãe, que coisa! e nem bebi tanto assim.
- a sua filha, adrielly! a SUA filha!
levantou-se vagarosamente, apoiando-se nos cotovelos. viu que estava com a mesma roupa da outra noite e sabia que sua aparência devia estar péssima. sua mãe viu temor em seus olhos, mas talvez tenha se confudido com o preto do lápis borrado.
- filha... mas quê? o que ela tem, mãe?
- febre. mas eu não tinha condição de levar ela pro hospital. e se for alguma coisa séria, eu quero ver só, eu quero que você aprenda. você não ouve seu celular, olha o tamanho das minhas olheiras, adrielly, eu já sou velha, adrielly... você é...
- bem, mãe, estamos quites em olheiras, não é?
a menina esfregou os olhos, espalhando ainda mais a maquiagem. sorriu para a mãe, que parecia estar a ponto de vomitar.
- adrielly, pelo amor de deus, filha, você é mãe! será que você não tem o mínimo de juízo dentro dessa sua cabeça, desse seu vestido curto, desse cheiro de de pinga! ah meu deus do céu.
- ok, mãe. você já disse todas essas coisas para mim. estou me levantando. posso tomar um banho antes?
um choro de nenê ressoou, distante. a mãe a olhou. adrielly teve a impressão que ela tinha água nos olhos. os olhos castanhos que antes eram vivos, olhos que embalaram sua infância, castanho agora parecia desgastado, ressequido, ressentido. parecia que não conseguiria mais embalar nem a filha crescida, nem a neta mal vinda.
- eu vou dar um oi para minha lindinha. e, depois, você pode aprontar uma mochila com as coisinhas da isa ou você quer que eu chege no hospital nesse estado?
a mãe mordeu os lábios. já não sabia o que deveria fazer. era governada por sua própria filha, e sua vida, agora, dependia da neta. tudo o que perdira era que Deus guiasse bem a sua vida. sabia que toda criança era uma dádiva, mas as suas duas crianças pareciam mais é presentes de Lúcifer. ultimamente, acreditava mais em Diabo que em Deus. saiu silenciosa, resmungando baixo.
- claro que você vai fazer isso, você não iria passar essa vergonha, né mamãe? - sussurou baixo. pôs os pés de unhas bem feitas no chão e saiu correndo para acolher a sua filha. gostava de como suas bochechas eram rosadas e como o seu riso era fácil. estava toda embalada em manta branca, e ainda estava quente. não gostava dos olhos verdes, verdes escuros, quase glaciais, exatamente iguais aos do pai. desviou do olhar impertinente e cheio de lágrimas da criança. colocou a cabeçinha em seu ombro, obrigando-se a não ver o que doía. olhou para a parede decorada de ursinhos cor-de-rosa do quarto da filha e teve vontade, também, de ter água nos olhos, perguntando-se o que seria daqui para frente. segurou suas lágrimas, pois acreditava que se mais alguém cedesse à vontade aquela casa viraria um mar, e já não haveria quem para poder ilhá-las.


(penso seriamente em fazer disto uma parte um)

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