sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

água nos olhos, parte três

aceitou o convite do médico. por ordem prática e humana, a ligação dela não demorou a acontecer. a tosse da filha melhorara depois do xarope receitado, e nada melhor que uma voz clara e otimista de quem não saiu perto da menina nos últimos dias. poderia ser qualquer infecção na garganta, ele concluiu, mas... espere, acho melhor te explicar direito isso. eu passo aí para te pegar. quando soube, a avó onisciente deu um meio-sorriso. aquele médico é um bom rapaz e é médico. vê se não faz besteira, hoje eu fico com a menina, mas vê se arranja pra casar. adrielly não ouviu muito a mãe, enquanto escolhia a roupa de calcinha e sutiã rendados.
- escuta, filha. não transa com ele nos primeiros encontros.
ela piscou. parecia ter guardado aquela sabedoria milenar de como arranjar marido e só estar revelando agora à filha. finalmente, ela ia se encontrar com alguém que prestasse. um bom sujeito. grisalho, mas bom. e poderia muito bem desenterrar daquela desgraça que ela os havia metido. ela tinha impressão que estavam enterrados em lama até o pescoço. não queria dizer nada, mas era sua obrigação pagar seus esforços, sua tristeza e seu investimento duplo.
adrielly esborrifou o perfume doce, enquanto admirava-se no espelho. tinha dúvidas quanto as roupas que deveria usar. talvez, um pouco mais clássicas. optou por um cachecol branco que constatava com sua pele moreno-jambo.
- por quê você nunca levou a sério minha aptidão para a moda, mãe? eu vou apoiar a isa no que der.
eliana riu com deboche. porém, guardou para si seus ressentimentos. deixa essa flor desabrochar, ela é só um broto em ebulição.
- sério, filha, amarra esse homem. por favor, amarra.
foi sua vez de rir. achava-o um grande homem, respeitava sua profissão, tinha fetiches em transar em cima da mesa de operação. mas não acreditava que ele quisesse pouco mais do que ela mesma, um pouco de prazer culposo. não podia negar que daria um bom pai. cada coisa que você pensa!
apressou-se quando ouviu sua buzina e deu um beijo na mãe, para tranquilizá-la. surpreendeu-se quando viu que saía, agora, com outro homem. talvez fosse só uma mudança estratégica de jaleco para blazer, mas ele parecia bruto. suas mãos firmes, que tocavam cuidadosamente peles macias de bebês, dirigiam com extrema aspareza e indiferença. quinze minutos de jantar e sabia do que mais gostava: sua voz. continuava sendo aquela voz tranquilizadora, uma espécie de anestesia natural. conversaram sobre a isa, sobre os tempos de faculdade. ela roçou sem querer suas pernas na dele. ele cravou seus olhos na mãe-garota risonha. riram, enquanto enrolavam os fios de talharini e levavam às bocas pedintes. tomaram bom vinho, até que as bochechas dela ruborizavam.
ele percebeu que entrava numa zona perigosa. assim como existem os salva-vidas que apitam quando a água do mar está além. há perigo de se afogar, de se afogar naqueles olhos d'água, e não apenas no seu corpo miúdo. quando isso acontecia, queria que os salva-vidas se calassem. queria que eles o deixasse um morrer, um pouco. morrer por um gesto, por um sorriso. isso raramente acontecia. não poderia acontecer, não doutor.
ele pagou a conta e pegou as chaves do carro. a noite se encerraria num motel e todo aquele perigo iria embora. beijaram-se no carro. ela tinha lábios finos, mas molhados, e tocava seus cabelos de maneira suave. ele ligou o carro, louco para chegar num quarto. qualquer quarto.
- me leva pra casa, por favor.
ela deve ter percebido. toda essa magia, essa adrenalina transparecendo, todos esses hormônios estúpidos, essa necessidade de sobrevivência da espécie. a fêmea quer garantir o macho. ela fareja e sente, sente o mínimo de possível cumplicidade. as fêmeas dessa espécie não querem só reprodução. querem pais presentes e carinho depois do sexo. querem jóias e jantares caros. querem ver o por-do-sol junto de seu animal domesticado.
- a gente se vê, não é? quero dizer, mesmo se for no clínica.
- sim, a gente se vê.
pausou. os olhos dela, que malditos olhos!, lhe diziam que não o deixariam em paz. os coletes de salva-vida foram roubados, doutor, sinto muito, quer que eu chame reforços? não, está tudo sob controle. eu aprendi a nadar quando era pequeno ainda.
- quero dizer, a gente se vê, com certeza. eu te ligo.
ela saiu do carro, um pouco assustada e satisfeita consigo mesma. quando chegou, deu um beijo na mãe, que já dormia. um beijo de gratidão. tirou a roupa, e deitou-se nua. alguma coisa ela teria que acertar. nem que for três casas da mega sena. algum dia se acerta todas.
já ele, enquanto dormia, deu-se conta de como era estúpido em se enganar. nunca ganhara uma competição de natação. mas, de qualquer maneira, poderia tirar o primeiro lugar. no coração de uma morena.
médicos não são românticos, cara. o que você disse?

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